Apreciação do Plano de Ordenamento do PNSAC (2009) pela Sociedade Portuguesa de Espeleologia e propostas de alteração

Introdução

Tal como na apreciação feita à versão de 2007 do Plano de Ordenamento do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, a Sociedade Portuguesa de Espeleologia reconhece o empenho dos técnicos do ICNB-IP que garantiram a qualidade da cartografia e dedicaram grande esforço à integração da informação produzida.

Infelizmente, de novo se reconhece que desígnios políticos que fazem tábua rasa dos estudos favoráveis à conservação da natureza ditaram o grande desequilíbrio a favor da expansão da indústria extractiva consignado neste PO, com prejuízo irreversível para os valores naturais do património espeleológico, geológico, geomorfológico e hidrogeológico.

Contrastando com a atenção dada aos interesses privados e de curto prazo dos exploradores de pedra, fortemente apoiados na influência que exercem sobre os autarcas que dominam e intimidam, o ICNB-IP (então ICN) não tomou seriamente em consideração nenhuma das críticas então formuladas em favor dos valores naturais abióticos, pelo que remetemos para as considerações que então elaborámos e que mantemos no essencial. De facto, dir-se-ia que há um peso excessivo e desproporcionado de biólogos na elaboração das concepções conservacionistas do ICNB-IP, que permite que este PO de novo aceite a destruição de largas áreas de morfologia cársica desde que substituídas por campos de terra misturada com pedras, resultado da “recuperação” das pedreiras. Podem ser destruídas grutas e lapiás, descaracterizados vales e dolinas, pode ser completamente desorganizada a faixa superficial de infiltração dos aquíferos, desde que o coberto vegetal possa ser vagamente reconstituído e haja algum espaço para a fauna. As grutas, os lapiás e uma ou outra escarpa ficarão como ilhas rodeadas por áreas geologicamente degradadas.

Este PO ignora a necessidade de revisão e correcção dos limites do PNSAC, que urge ajustar às subunidades geomorfológicas e às bacias de alimentação das grandes nascentes e cuja protecção o PNSAC deveria assumir. É evidente a debilidade do ICNB-IP face à pressão autárquica ou o alheamento ou incapacidade de diagnosticar os prejuízos que advêm do indiscriminado alargamento dos perímetros urbanos, admitindo na prática a inversão de hierarquias nos instrumentos de ordenamento. O próprio polje de Minde, já drasticamente espartilhado pelo irracional limite rodoviário, vê a sua área de definição efectiva ser invadida pelo alargamento do perímetro urbano de Mira de Aire e de Minde, ao invés de ser estendida a toda a vertente leste e nordeste. Tão pouco houve a clarividência de incluir a totalidade de grutas importantes parcialmente abrangidas na área actual nem de prolongar os limites àquelas com que confina, como são os casos das duas maiores grutas de Portugal, respectivamente as de Moinhos Velhos e do Almonda.

As regras estabelecidas no PO para autorização de instalação e ampliação de explorações de extracção de pedra permitem que a área de exploração alastre quase indefinidamente e invada vastas regiões do PNSAC desfigurando completamente do ponto de vista cársico esta que era a região cársica mais característica do país. Essas regras são de tal modo lesivas do património geológico que a sua aplicação resultará na destruição, em poucos anos, de grande parte da superfície natural dos planaltos, sendo as grutas, dolinas, campos de lapiás e afloramentos rochosos substituídos por escombreiras de calhaus misturados com solo.

Alterações propostas ao Regulamento do POPNSAC

No Artº 4º d), em vez de: “«Cavidade cársica», cavidade natural resultante de fenómenos de dissolução da rocha pela água da chuva ou dos rios, nomeadamente grutas e algares;”
Propomos: “«Cavidade cársica», cavidade natural resultante de fenómenos de corrosão e erosão da rocha, incluída na designação genérica de grutas, nomeadamente lapas e algares;”
Ou: “«Gruta», cavidade natural resultante de fenómenos de corrosão e erosão da rocha, nomeadamente lapas e algares;”

No Artº 7º, d) em vez de: “Promover a preservação e a valorização do património geológico nas suas múltiplas componentes;”
Propomos: “A preservação e a valorização do património geológico nas suas múltiplas componentes, que garantem a conservação das principais características distintivas desta região natural e permitem estudar a sua evolução geo-histórica, nomeadamente:

1 – os afloramentos que contenham informação significativa para a compreensão da evolução sedimentar, estratigráfica e paleontológica da Bacia Lusitânica e das fases tectónicas a que a região esteve sujeita;
2 – os testemunhos de superfícies de aplanação, depósitos correlativos e rebordos de erosão, como as arribas fósseis, bem como as escarpas de falha responsáveis pela individualização dos vários sectores do Maciço Calcário Estremenho;
3 – os depósitos de vertente e outros sedimentos que permitem diagnosticar os paleoclimas vigentes na região e a evolução da fauna durante o Quaternário;
4 – os fenómenos cársicos superficiais, incluindo os campos de lapiás, os vales com feição cársica, as dolinas e as grandes depressões cársicas, como os poljes e depressões tectónicas ou de sopé com morfologia semelhante;
5 – as grutas e as cavidades paleocársicas fossilizadas;
6 – as áreas de epicarso ainda não degrado, enquanto áreas de particular importância nos processos de recarga,  protecção e estabilização do armazenamento dos aquíferos cársicos, as exsurgências e as cabeceiras associadas.”

Propomos igualmente que seja acrescentado um ponto, que consideramos de máxima importância, com a seguinte redacção:
“Promover a realização de estudos conducentes à integração das partes das subunidades geomorfológicas incompletamente incluídas na área actual do PNSAC”

No Artº 7º, h) em vez de: “A promoção de práticas agro-florestais que conduzam ao estabelecimento de uma floresta de uso múltiplo com espécies indígenas, promovendo uma gestão activa que potencie o seu uso múltiplo e a redução de risco de incêndio, através de acções e medidas preventivas compatíveis com os objectivos de conservação da natureza e da biodiversidade;”
Propomos: “A promoção de práticas agro-florestais que conduzam ao estabelecimento de uma floresta de uso múltiplo com espécies indígenas, promovendo uma gestão activa que potencie o seu uso múltiplo e a redução de risco de incêndio, através de acções e medidas preventivas compatíveis com os objectivos de conservação da natureza e da biodiversidade, nomeadamente o respeito pela morfologia cársica e o impedimento da mobilização do solo com técnicas que impliquem o seu reviramento com afectação do substrato rochoso (ripagem da superfície do terreno e despedrega mecânica);”

No Artº 7º, i) em vez de: “A adaptação progressiva das normas gerais de emissão de efluentes à capacidade do meio receptor característico;”
Propomos: “A adaptação urgente das normas gerais de emissão de efluentes à capacidade do meio receptor característico;”

Consideramos que a alínea c) do Artº 8.º tem uma redacção gravemente permissiva pois apenas se refere à destruição de cavidades “relevantes” (“A destruição ou alteração de cavidades cársicas relevantes, objecto de investigação científica ou cujo valor patrimonial, seja reconhecido pelo ICNB,IP,”).
Ora, na realidade cada gruta não é um exemplar da mesma espécie cuja decisão de destruição ou preservação apenas dependesse do número existente, tal como se poderia raciocinar simplisticamente para uma planta ou animal. As grutas são todas diferentes e a sua importância real é avaliada considerando o conjunto dos diversos tipos de vestígios que encerram, da sua importância para diferentes disciplinas e cujo grau de valoração não se mede pelo tamanho, posição ou beleza mas apenas pode ser avaliado após estudo. Deste modo, aceitar, como se faz no Regulamento, que todas as não “relevantes, objecto de investigação científica ou cujo valor patrimonial seja reconhecido pelo ICNB, IP” poderão ser destruídas ou alteradas, é, seguramente, inadmissível para a comunidade científica consciente.
Por isso propomos que esta alínea passe a ter a seguinte redacção:
“A destruição ou alteração de qualquer cavidade cársica sem parecer favorável do ICNB, IP com base em avaliação efectuada por especialistas”. Mais, achamos que deve ficar exarada neste Regulamento a responsabilidade do ICNB, IP, na verificação, directa ou delegada, de que tais factos não ocorrem nomeadamente nos casos onde a probabilidade de tal suceder é maior, como nas explorações de extracção de pedra, abertura de estradas e construção. A alínea seguinte está incluída nesta.

Consideramos que o texto da v) “Abertura ou ampliação de acessos com largura total superior a 7 metros, incluindo passeios e bermas, excepto os casos previstos no plano rodoviário nacional e os traçados previstos para a rede ferroviária de alta velocidade;” é demasiado permissivo e deveria estancar a proliferação de acessos que tem ocorrido em muitas áreas do PNSAC. Os estradões causam nítido impacte visual e não é a largura o factor em avaliação.

Propomos que o texto da alínea bb) “A prática de campismo ou caravanismo fora dos locais destinados para o efeito;” seja substituído por “A prática de campismo ou caravanismo fora dos locais destinados para o efeito, excepto durante a execução de trabalhos ou estudos autorizados pelo ICNB, IP;”

No Artº 9º, s) consideramos a redacção demasiado geral permitindo a permanente discricionariedade sobre actividades que têm como elemento de estudo as grutas, isto é a Espeleologia s.l., pelo que, certos de que não há a intenção de hegemonia de uma vertente da Espeleologia sobre outras, propomos que em vez de: “A visitação e a entrada nas cavidades cársicas susceptíveis de albergar comunidades de morcegos;” se escreva: “A entrada nas grutas que alberguem importantes comunidades de morcegos;”. Na realidade, a maior parte das grutas são “susceptíveis de albergar comunidades de morcegos”. Por outro lado, e a menos que haja intenção deliberada de criar possibilidades de sancionar os visitantes das grutas (os espeleólogos), deve estar referido em alguma parte do Regulamento que as grutas que se considere albergarem importantes comunidades de morcegos devem estar devidamente identificadas e sinalizadas.

Tendo em atenção os sérios danos provocados pelo guano de morcegos sobre os sedimentos e cristalizações das grutas, propomos também que seja exarada no Regulamento a preocupação de proteger da entrada de morcegos as grutas que contenham cristalizações sensíveis, características ou bem conservadas, nomeadamente aquelas cuja entrada resulta de desobstrução ou descoberta recente.

Propomos que a redacção da alínea d) do Artº 16º seja substituída por “Preservar a qualidade dos recursos hídricos subterrâneos através do condicionamento das actividades agrícolas e agro-pecuárias passíveis de contribuírem, directa ou indirectamente, para a perda de qualidade dos mesmos.”

Na redacção do ponto 3 do Artº 21º propomos que em vez de “desobstrução da entrada de cavidades cársicas que servem de abrigo a colónias de morcegos” se escreva “a limpeza da vegetação que obstrui a entrada de grutas que servem de abrigo a colónias de morcegos”.

Consideramos negativo que em toda a extensão das Áreas de protecção complementar do tipo II sejam permitidos os licenciamentos de pedreiras, mesmo as que decorram do encerramento de explorações licenciadas da mesma tipologia e/ou respeitem o disposto no artigo 32.º do regulamento. Esta possibilidade deveria ser limitada a determinadas zonas, evitando a sua dispersão pela extensa área deste tipo. Também deveria ser restringindo o número de pedidos consecutivos de ampliação e impossibilitadas novas explorações fora dessas zonas dentro do período de vigência deste Plano.

Chamamos a atenção para a redacção do ponto 4 do Artº 34º que pode ser interpretada de forma drástica e impedir o desenvolvimento de estudos necessitem da colheita de amostras geológicas (estudos de paleontologia, estratigrafia, tectónica), abertura de sanjas e poços de investigação (estudos de arqueologia e neotectónica) e desobstrução de passagens estreitas em grutas (espeleologia). Por isso propomos em alternativa a seguinte redacção: “Os estudos científicos que impliquem a alteração da integridade dos valores naturais do PNSAC apenas podem ser efectuados mediante justificação científica e metodológica julgada pertinente pelo ICNB, IP”


Propostas de alteração de limites apresentados na Carta de Síntese

Numa avaliação global da distribuição das APC II conclui-se que a sua distribuição, associada à permissão de instalação de explorações de extracção de pedra, vai ser a causa principal de uma nova fase de degradação do património geomorfológico do PNSAC que em poucos anos permitirá que os interesses fortes contra a conservação da natureza que desde sempre se têm manifestado reclamem fundamentadamente a extinção do PNSAC. Por isso, além das áreas referidas abaixo em particular, propomos que a cartografia de todas as áreas de tipo APC II seja profundamente revista.

Na “Área sujeita a exploração extractiva, recuperada ou não por projectos específicos” c.01- Codaçal, propomos que o limite oeste seja deslocado para leste, devendo contornar rigorosamente os limites das actuais pedreiras. Pretende-se com esta proposta evitar que aumentem os impactes visuais provocados na escarpa de falha que constitui o bordo leste da depressão da Mendiga.

Na “Área sujeita a exploração extractiva, recuperada ou não por projectos específicos” c.02 - Planalto de Stº António, propomos que o limite oeste entre Pia Longa e Cabeço da Giesteira seja deslocado paralelamente cerca de 700 metros para leste, devendo contornar rigorosamente os limites das pedreiras existentes actualmente. Propomos ainda que o limite a nordeste deste, nos arredores de Vale da Có, contorne também rigorosamente os limites das actuais pedreiras, tal como a leste, entre o Vale das Massanetas, Corredoira, Vale Pocinho, Cabeço das Pombas e Valinho. Esta proposta visa preservar os últimos testemunhos dos campos de lapiás da fachada sudoeste do Planalto de Santo António que outrora caracterizavam as suas vertentes meridionais e actualmente apenas restam no encrave do Cabeço da Chainça.

Com o mesmo objectivo, consideramos imprescindível que a parte da escarpa de falha da Costa da Mendiga situada entre a Mendiga e Valverde, incluindo também o Cabeço da Giesteira, seja classificada como APP I  em vez de APC II, como está na Carta de Síntese. Também toda a vertente do Serro dos Casais, que constitui o bordo oeste da depressão da Mendiga deve ser considerada de tipo APP I.

Consideramos que a estreita faixa cartografada como APC II que acompanha irregularmente o topo da Costa de Minde e da Costa de Mira de Aire deve ser absorvida pela mancha de APP I com que confina, já que a característica principal desta área (escarpa de falha) se mantém apesar de ligeiras variações no declive ou noutros aspectos.

Também consideramos que as faixas situadas na base da Costa de Alvados e em parte do Vale da Canada, presentemente propostas como APC II se enquadrariam melhor em APP II.

Na Serra dos Candeeiros também propomos que sejam consideradas de tipo APP I a parte da arriba fóssil situada a nordeste e a sudeste de Moleanos, e entre Vale Travelho e Corredoura, tal como as faixas da Serra da Pevide consideradas de tipo APC II.

Consideramos ainda que é contraproducente o incentivo que o PO dá à dispersão populacional, através do alargamento/criação de novos perímetros urbanos, especialmente em determinadas áreas, onde existem grandes espaços disponíveis para urbanização dentro de perímetros já aprovados.

Lisboa, 20 de Novembro de 2009

Sociedade Portuguesa de Espeleologia
Secção de Ambiente